O DIA EM QUE QUEM PIROU FOI À RUA BRINCAR COM QUEM TÁ PIRANDO
É verdade que Momo já vinha comparecendo ao Pinel, ainda que timidamente: nas últimas edições da festa, concursos de fantasias e sambas organizados pela TV Pinel, alguns batuqueiros do “Empolga às 9” e um palhaço do “Gigantes da Lira” alegraram o carnaval dos pacientes. Em 2005 surgiu o desejo de transpor os muros e se misturar ao movimento de revitalização do carnaval de rua do Rio de Janeiro, que há pouco mais de 6 anos vem transformando o cenário da cidade no mês de fevereiro, mudando o rumo de uma festa que se tornava cada vez mais elitizada, para inglês ver e celebridade aparecer.
O primeiro passo foi a aproximação entre duas instituições de saúde mental que embora vizinhas se conhecem pouco. Logo na primeira conversa com os Cancioneiros do IPUB, veio a certeza de que era possível colocar o bloco na rua e a vontade de que esse bloco resultasse de uma criação coletiva, envolvendo usuários e funcionários dessas instituições, além de moradores do entorno e quem mais quisesse participar. Partiu de Gilson Secundino a primeira sugestão de nome para o bloco – que posteriormente viria a ganhar o concurso para eleição do nome definitivo: “Eu penso que o nome pode ser ‘TÁ PIRANDO, PIRADO, PIROU!’”. E explicou: “A gente tem que ser ousado e pretensioso. Não vamos fazer uma festa de carnaval apenas pra quem já pirou, vamos pra rua brincar com quem tá pirando!”. Indagado dias depois sobre como se sentia ao saber que sua sugestão havia conquistado o maior número de votos, após disputa acirrada com “Loucura por conveniência”, sugestão de outra usuária, Gilson respondeu: “fico contente, mas a idéia não é minha, eu apenas encontrei as palavras que permeavam o pensamento do grupo. Agora precisamos comunicar à RIOTUR para não termos problemas com patente”.
O contato com a Associação de Moradores da Lauro Müller selou o desejo de festejar na comunidade. Com o apoio da ALMA, iniciamos campanha para doação de fantasias pelos moradores, decidimos o trajeto do bloco e conseguimos o empréstimo do carro de som dos sindicalistas da Petrobras. Depois de decidido o nome, seguiu-se a votação para escolha das cores e do logotipo. As cores vencedoras, sugestão desse que ora escreve e de Esther, foram o laranja, o azul turquesa e o verde limão. Para o logotipo, Neli deu a ideia de juntar os dois desenhos de Samy, produzidos na oficina de criação permanente do Papel Pinel, que estavam a princípio separados: a mulata cujas ancas opulentas são o morro do pão de açúcar (batizada de “Bondão do pão de açúcar”) e o malandro de pandeiro na mão. Com a boa vontade de Esther e sua equipe foram confeccionadas as camisas do bloco, que logo se esgotaram. A afirmação de um usuário de que gostava mesmo era do carnaval de Veneza foi a senha para a construção de máscaras de gesso, feitas com o esmero de Júnia, técnicos e estagiárias do Pinel. Walter Filé sugeriu o nome do xará Walter Alfaiate, emérito sambista e morador ilustre do bairro, para apadrinhar o bloco, convite prontamente aceito. Com duas reuniões semanais ao longo de janeiro (4f no IPUB e 5f no Pinel) e com o apoio decisivo do IFB, AMOCAIS, TV PINEL, Setor de Comunicação do IMPP, PAPEL PINEL e Cancioneiros do IPUB, a idéia do bloco se tornou realidade.
No dia 3 de fevereiro essa alegre bagunça organizada ganhou as ruas, após o aquecimento com os internos, que desfilaram suas fantasias, e a primeira canja de Alfaiate. Antes mesmo de sairmos do pátio, Esther comentou: “hoje parece que não tem doença nesse hospital”. E lá se foi o “Tá pirando, pirado, pirou!” atravessando o campus da UFRJ em direção à rua Lauro Müller. Músicos do “Céu na Terra” no sopro, as meninas da “Fina Batucada” na percussão, sob a batuta do mestre Rico, Vandré no cavaquinho, Elisa do “Empolga às 9” cantando marchas e sambas, presença de batuqueiros do “Empolga”, “Bangalafumenga”, “Monobloco”, “Brejeiro”, músicos do “Harmonia Enlouquece” e agregados garantiram o som. À frente da trupe, o abre-alas composto por um garboso estandarte - preparado cuidadosamente por Shirley - e o não menos garboso casal de mestre-sala e porta-bandeira, Luis Cláudio, leve e solto em sua vistosa camisa-de-força e Neli, faceira com seus véus esvoaçantes. Os foliões que não tinham fantasias se ornavam com caixas de psicotrópicos distribuídas ao longo do trajeto. “Ei, você aí, me dá um remédio aí!”, gritou um transeunte. No intervalo entre um samba enredo e uma marcha, um usuário disparou: “Pirou por que? Por que pirou?”. Elisa, que assumiu o microfone do carro de som, repetiu o refrão, para em seguida perguntar: “Quem já pirou? Quem tá pirando?”. A essa altura, já não cabia tal distinção: em uníssono, todos respondiam afirmativamente a ambas as perguntas.
A celebração dionisíaca da vida que o carnaval encarna tem na loucura uma prima irmã. Dando vazão ao lado alegre da loucura, uma iniciativa como essa contrapõe-se ao sofrimento excessivo que tantas vezes persiste não obstante os nossos melhores esforços. Parafraseando Foucault, nos momentos em que o gesto louco se expressa por meio da irreverência, da criatividade e da vitalidade, “a obra não falta”. Franco Rotelli escreveu certa vez que não há melhor centro de atenção psicossocial do que um mercado popular, com sua profusão de odores, cores, ruídos e trocas humanas de toda sorte. Esse foi o espírito em que foi concebido o “Tá pirando”.
Bem, nem tudo correu conforme o previsto – mas, afinal, previsibilidade não é mesmo o nosso forte. O pessoal do Instituto Benjamin Constant, que chegou a flertar com o bloco, deixou o namoro para o próximo ano. As marchas de Joana e Leslie e o samba de Demétrius, compostos especialmente para o bloco, foram cantados no Parque General Leandro, quando boa parte dos músicos já tinha se dispersado. O momento apoteótico aconteceu mesmo no final da Lauro Müller, com mais uma canja de Walter Alfaiate, seguida pela participação luxuosa de Tantinho da Mangueira. Ao fim e ao cabo, saldo mais que positivo: já se ventila a ideia de criar uma oficina permanente de carnaval. Gestada em menos de dois meses, a cria nasceu de parto (relativamente) normal. E ali, naquela esquina, se deu o batismo da criança em praça pública, com as bênçãos de seu ilustre padrinho. No final, ficou um gostinho de quero mais. Melhor assim: a festa de um ano dessa criança promete. Evoé Baco!
Alexandre Ribeiro Wanderley
Psicólogo do IMPP
O segundo desfile...
Alexandre Wanderley
O primeiro aniversário do bloco carnavalesco “Tá pirando, pirado, pirou!” foi comemorado com uma bela festa popular, que enriqueceu e confirmou a pujança do movimento de revitalização do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro. Cerca de 600 foliões, entre usuários e funcionários dos serviços de saúde mental, cadeirantes do Projeto “De Volta à Cidadania”, moradores do entorno e amantes do carnaval em geral atravessaram alegremente a Av. Pasteur, provando uma vez mais que a integração social – e não a histórica segregação dos diferentes - é um instrumento poderoso de promoção da saúde mental dos que são acometidos de grave sofrimento psíquico. E nada mais acolhedor das diferenças do que essa grande mistura que é o carnaval de rua. D. Pedro II, que fundou nessa mesma avenida o primeiro hospício da América Latina 154 anos atrás, nem em seu mais doce delírio visionário poderia imaginar tal invasão de cores, sorrisos e sons daqueles que permaneceram tanto tempo silenciados. Nem mesmo o conhecido hermitão da Pista Cláudio Coutinho, que vive por aquelas matas recluso com seus cães, resistiu ao chamado dos tambores: voltou ao convívio dos humanos e botou seus cachorros camaradas pra sambar. Das janelas dos prédios, senhoras acenaram comovidas com a melodia de antigos carnavais. Grandes bonecos de Molemba do Projeto Ecoarte fizeram a felicidade das crianças, dando um toque especial ao charmoso desfile. E que venha o próximo!
Depoimentos
Relato do folião Bruno Rodrigues após o desfile 2011
O desfile foi muito bonito e muito harmonioso. A organização era muito boa, o público presente era animado e do tamanho ideal para todo mundo curtir em paz (coisa que está se tornando rara em muitos blocos por aí). O pessoal do Pinel preparou adereços de mão e alegorias divertidas que tomaram a concentração da Pasteur. Tenho que deixar aqui meu elogio ao enredo. Inicialmente, não havia entendido muito bem esse enredo que falava de sentidos e fazer fotossíntese - doido, não? As alegorias me ajudaram a entender e a evolução pela avenida mais ainda! Bravo! Foi uma festa e tanto. Os pacientes foram abrindo alas, o resto da turma se concentrou entre a alegoria que representava o jardim de Epicuro (que transbordava em sentidos) e a bateria. Ao lado do carro de som, um enorme e divertido boneco estava muito bonito - esse boneco ficou muito legal, pude vê-lo depois do bloco, já guardado no pátio do Pinel.
A Marcela me pediu para distribuir algumas ventarolas com a letra do samba (que por sinal, era bem legal e pode ser bem ouvido o tempo inteiro). Fiquei impressionado quando as pessoas se amontoaram em volta de mim pedindo ventarolas. Também me impressionou a quantidade de pessoas que queria comprar a camisa, mesmo não tendo, aparentemente, nenhuma relação com os organizadores do bloco. Todo mundo quer participar! Que coisa é o carnaval! E nessa distribuição de ventarolas, um menino me pediu uma serpentina (eu estava com um saco de confete e serpentina preso na cintura). Já tínhamos jogado algumas serpentinas e alguns confetes e eu ainda planejava brincar mais com isso (eu gosto, tá?). Mas quando dei o primeiro rolo de serpentina para o menino, resolvi distribuir todo o resto entre a criançada, sempre com a advertência: "capricha, hein!". E como eles capricharam, fizeram um trabalho muito melhor do que o meu. Claro que eu peguei os confetes e fui passando para todos eles jogarem também. Por fim, um menino estava com um adereço distribuído na concentração igual ao meu - uma boca com a língua de fora. Ele colocou a "boca" sobre a boca e ficou fazendo uma careta pra mim. Eu fiz o mesmo e o outro menino que estava junto dele deu boas gargalhadas. Dei meu adereço para esse menino que me olhou como quem não acreditava no que estava ganhando, e começou a brincar de fazer caretas. Imagens bonitas, dessas que a memória se recusa a guardar e manda lá para o coração.
Mas para mim, a grande emoção foi a nossa chegada à dispersão. Para os que se lamentam dos velhos carnavais, eu posso dizer - ainda que não seja tão velho assim - que naquele momento, o carnaval voltava à sua origem tantas vezes esquecidas nas nossas memórias desbotadas. Vi os componentes do bloco, com suas camisas verdes, formando um imenso jardim. Um jardim de alegria, de prazer e de felicidade. Os pacientes do Pinel, tão carinhosamente acompanhados, vinham à frente, vestindo a fantasia da liberdade - tão cara a eles - e sem máscara alguma. Todos os sentidos, sensações e sentimentos se aguçaram. O morro da Urca e o Cara de Cão, que durante o ano inteiro espremem os quartéis da cidade, abriram alas para a explosão de fotossíntese que éramos nós. Nosso brilho ofuscava as botas reluzentes dos sentinelas da praça. Entramos triufantes, como falei na hora para a Marcelinha muito emocionado, entramos pela praça, livres, alegres, inclusivos e democráticos. Que mudem as tendências, que mudem as cadências do samba, mas essa é a essência docarnaval e ela não morreu! Ela fez fotossíntese! Realmente, carnaval é uma coisa de maluco...
Bem perto de onde a nossa cidade foi fundada, o bloco encerrou seu desfile com os sambas antológicos que nós nunca nos cansamos de cantar. Os amigos reunidos, os amigos dos amigos se tornando amigos, a cerveja gelada, o samba, os sorrisos espalhados, as crianças brincando, os mais velhos se beijando, a sociedade sem partições. Fizemos uma bonita, e como não podia deixar de ser, inconsciente, homenagem à nossa cidade, que hoje faz aniversário, mas acima de tudo, uma homenagem à nossa cultura e à nossa história.
Para os que não foram, fica aqui a dica para o ano que vem